22 de novembro de 2024 | Luís Matheus Brito
O incidente é fútil (é sempre fútil), mas atrai para ele toda a minha linguagem. Eu o transformo imediatamente num acontecimento importante, pensado por alguma coisa que se assemelha ao destino. É uma capa que cai sobre mim, arrastando tudo.
— Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso (tradução de Hortênsia dos Santos).
Quem assiste a Mergulho (2024), curta-metragem de Breno Silva e Wilson Neto, tem a impressão de acompanhar a formação de um voyeur menos interessado na apreciação do ato sexual alheio que na elaboração de uma forma artística. No caso do protagonista Sandro, a elaboração de formas visuais, graças às quais se lança nos rastros de um sujeito anônimo. Interpretado por Benício Júnior, Sandro se mantém à distância, sem provocar contato, uma vez que a fotografia — a linguagem inaugural do personagem — beneficia a persecução. Aqui, o éthos do fotógrafo é o páthos, ou seja, a conduta tem um vínculo permanente com a paixão. Isso é inegociável. Ao se deparar pela primeira vez com o sujeito pelo qual se interessa, o protagonista de Mergulho precisa construir a moldura dentro da qual o outro ganha vida como espectro, como fantasma, que se manifesta desse mesmo modo no filme. Uma miragem noturna, cuja construção à luz do dia funda o acontecimento crucial: o incidente na praia, quando Sandro e os amigos se deparam com o grupo de dançarinos, que são interpretados por membros da companhia Sutaques de Casa.
Desse momento em diante, assistimos à ruptura no véu da realidade imediata do fotógrafo. Ele precisa rememorar o corpo do sujeito pelo qual se atrai: o dançarino interpretado por Pedro Bagano. Através da fotografia ou, como último recurso, da pintura, há o rapto das formas corporais do sujeito que, no incidente, torna-se objeto de desejo de Sandro. Por isso que há, talvez, uma inversão de lugares-comuns em Mergulho. O dia é o período ao longo do qual está reservada a experiência delirante — lembremos as derivas fotográficas entre Aracaju e Barra dos Coqueiros; nessas cenas, a imagem em movimento quer simular a imagem estática. O corte entre as cenas define um caminho para a fotografia, algo que está dado desde os minutos iniciais, quando ouvimos a voz de Sandro pela primeira vez (não por acaso, a voz é, segundo Paul B. Preciado, “a única coisa que consegue cruzar o umbral”¹ — ou mesmo os blocos de concreto de uma cidade). O movimento está lá, mas parece secundário quanto à apreciação de um plano.
À noite, a experiência gira em torno de certa lucidez. Porque o espaço urbano não deixa de se apossar do espaço de descanso, do espaço doméstico, onde Sandro e os amigos são lembrados da presença da cidade, graças, inclusive, aos ruídos de cães e carros minuto após minuto. A paisagem sonora do lado de fora é proeminente e vulgar, intercala-se entre os diálogos, mas, na casa, as questões de migração e trabalho assumem a dianteira. Recém-chegado à Aracaju, o protagonista reitera para os amigos o nome da cidade natal — Aracati —, ao mesmo tempo que reflete sobre o enquadramento que foi dado a ele: a pessoa à espera de um vínculo simbólico com a capital sergipana tão efetivo quanto a necessidade de encontrar um emprego. A vida material pauta a relação entre Sandro, família e amigos. Sem um trabalho fixo, afinal, ele permanece vulnerável. (Aqui, o trabalho artístico — o trabalho não remunerado — se torna o refúgio para a exploração do homem pelo homem. A via de escape, da qual Sandro extrai, na medida do possível, um gozo.)
O ponto de inflexão é, logo depois de uma tarde à procura do objeto de desejo, a revelação do fantasma para o protagonista. Ao se manifestar no corredor do apartamento, o espectro do dançarino se reveste com a luz que vem do quarto. A luz amarela e lateral, contrapondo-se à luz fria que está ao redor do voyeur, que, aos poucos, olha de soslaio para o espectro. A visão do espectro é, por excelência, frontal. Sem rodeios. Ele é a representação do dia penetrando na noite, até que o espaço doméstico conquiste a experiência delirante. Em Mergulho, dia e noite entram em pé de igualdade à medida que Sandro faz, em casa, a passagem da postura desassossegada para a postura inventora. Nas cenas finais, sai do sofá em direção à mesa de trabalho, melhor dizendo, sai do estado passivo em direção ao estado proativo. Assim, as mãos entram em efervescência, para que se conquiste a imagem derradeira. O espectro, a fotografia e a pintura são, no fim das contas, criações de Sandro, que se tornou vítima do incidente no qual viu uma manifestação do destino. O oráculo ludibriado.
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[¹] Paul B. Preciado, “Tecnoconsciências”. In: Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 252.
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Breno Silva é produtor, diretor, montador e curador. Sua primeira codireção, Mergulho (2024), está em fase de distribuição. Foi curador do 3º Festival Internacional de Cinema de Itabaiana e da mostra internacional do V Festival Internacional de Cinema Universitário de Pernambuco. Fez parte do júri do Prêmio Olhar Crítico, da 11ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano. É membro do Cineclube Voyage.
Wilson Neto é diretor e atua na área da fotografia. Foi curador da Mostra Maracá - Narrativas Indígenas no Nordeste (2021). Mergulho (2024) é sua estreia na direção de curta-metragens. Trabalhou na produção de documentários do núcleo ProjetarSE - Apoio Técnico e Desenvolvimento Municipal.
Luís Matheus Brito (1994) é poeta, ensaísta e mestra em Estudos Literários pela UFS (Universidade Federal de Sergipe). Publicou Guia de Queixumes (edições blague, 2021). Edita a Tilápia-azul.