1º de agosto de 2025 | Davi Cavalcante
3 de abril de 2020
gravamos
com nossas próprias mãos
talhamos
além da superfície
com os nossos pensamentos
as nossas ações
as nossas palavras
a nossa indiferença
construímos algo
materializamos a nossa separação
ODIAR
CENSURAR
REPUDIAR
CULPAR
SILENCIAR
JULGAR
foi o que aprendemos a fazer
O QUE ME APROXIMA DO OUTRO?
reflentindo sobre essa questão, lembrei de uma experiência que tive. enquanto performava para o 67° Salão Paranaense de Arte Contemporânea em Curitiba, estava imerso no ofício da construção de um muro simbólico. nesse espaço-tempo, algumas pessoas passaram, outras se aproximaram e muitas ignoraram.
por estar usando protetor auricular durante a performance, eu não ouvia tudo e nem queria, estava compromissado em um corpo fechado que reforçava a poética da obra. entretanto, não estava surdo e alguns sujeitos me marcaram.
durante meu estado de presença, um homem passou e falou alto: "mó dahora esse muro de Berlim". pouco depois, dois homens se aproximaram e um deles questionou o que estava sendo construído. o educativo no MAC estabeleceu um diálogo com ele, que fiquei sabendo depois. o homem era um pedreiro que ficou curioso e se aproximou. o amigo que o acompanhava, falou: "tem algo escrito nos tijolos".
depois de remover os protetores do ouvido, os sons do ambiente se intensificaram e eu fiquei refletindo de frente para o muro construído, qual o significado daquilo além da minha proposição.
o que me conecta a um pedreiro? o que de comum há entre nós? qual o poder da estética para a abertura de um diálogo?
viver. sentir. agir. crescer. construir. errar. coisificar. performar. ritualizar. materializar. expor. vulnerabilizar. ressignificar.
acredito na performance como um ritual que me ajuda nas desCONSTRUÇÕES. fazer uma ação, repeti-la , perceber a diferença entre elas, isso é um processo de digestão.
entendo que a ação precisa ser feita e refeita até que o corpo perceba que não faz sentido tantas repetições, até que ele aceite ou mude as coisas que estão dadas.
pensando nos muros, eu não sei quando meu corpo deixará de se relacionar com eles, então aceito a condição de materializar o intangível na tentativa de expor e vulnerabilizar a dureza das relações.
29 de abril de 2024
antes de iniciar a performance Do que são feitos os muro, eu fecho os meus ouvidos, coloco um protetor auricular que me leva a outros ruídos.
me lembro dos minutos que antecedem a ação, quando o externo deixa se ser relevante e eu entro em mim, na intenção de materializar questões que me atravessam enquanto corpo e que me esforço para contorná-las.
enquanto faço o movimento de gravar as palavras, empilhar os tijolos e construir o muro, eu sou tomado por reflexões da representação daquele muro. apesar da performance ser feita pela segunda vez, o meu corpo, tempo, espaço, contexto e momento são diferentes, algo que vai além de mim se instaura no meio.
*
fechar a exposição Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira com a performance-instalação Do que são feitos os muros foi simbólico e importante.
enquanto eu performava, refletia sobre a relevância de estar dentro do CCBB-SP no contexto de uma exposição afrocentrada, sentindo o tensionamento entre a construção e a implosão desses muros que limitam a ascenção de artistas negros com suas temáticas e interesses, que são plurais.
chegar até aqui é um sinal de que não há retorno, é impossível olhar para a construção e não pensar nela como uma evidência de uma trajetória e como uma provocação que tem gerado movimentos que me aproximam de outros horizontes.
agradeço o convite de Deri Andrade, que através do Projeto Afro conseguiu erguer essa proposta com tanto cuidado.
acessar outro lugar.
continuar a construção.
repetir a ação.
sentir em outro tempo.
silenciar o externo.
gritar internamente.
cansar de tanto grafar.
respirar e pausar.
sentar para admirar.
no último domingo, o muro que está na exposição Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira cresceu, em mais uma etapa do projeto que saiu de São Paulo e agora se encontra no CCBB Belo Horizonte.
*
enquanto trabalhava nele mais uma vez, lembrei de uma associação que fizeram quando realizei a performance em São Paulo, relacionando o movimento performático ao butoh.
construir uma obra e ver nela os escombros.
19 de setembro de 2024
do que são feitos os muros?
os tijolos aparentes da casa onde morei na adolescência me deixavam com vergonha de chamar amigos para ir lá em casa.
o medo do julgamento, da crítica, do desprezo, entre tantas outras paranoias que inundavam minha mente.
17 de novembro de 2024
Entre RJ e SP
Preso num engarrafamento
eu poderia iniciar aqui escrevendo a cronologia entre provocação, a concepção e a circulação da obra Do que são feitos os muros, mas quero me render primeiramente aos atravessamentos que ela me causa, das falas, sensações, ações que ocorreram das vezes em que coloquei o meu corpo para performar esse trabalho.
recentemente, no CCBB do Rio de Janeiro, na montagem da exposição Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira, à qual sou grato por permitir a circulação desse trabalho para expansão dos diálogos possíveis, conversava com Wes sobre como o núcleo Linguagens, no qual a obra se situa na narrativa curatorial, tensiona as relações de construção, pertencimento e disputa dos territórios, principalmente em relação às cidades e aos sujeitos.
antes de chegar, pensar em estar no Rio de Janeiro pela primeira causava em meu corpo um estranhamento. talvez ainda estivesse inconscientemente regido pelas notícias, as narrativas que vendem da cidade maravilhosa. vivendo-a, mesmo que numa relação rápida e de trabalho na maior parte do tempo, pude experimentar um corpo mais relaxado que o imaginado. nesse momento, eu olhei para o muro.
encontrar o desconhecido e se relacionar com ele é um exercício que demanda, acima de tudo, abertura. isso se dá através da escuta, de uma visão atenta, da construção de espaços que consigam aproximar, criando uma atmosfera de troca.
lembro que quando cheguei em Curitiba, na primeira vez em que performei esse trabalho na Praça Eufrásio Correia, na Avenida Sete de Setembro, para o 67° Salão Paranaense de Arte Contemporânea (MAC PR), percebi a presença de dois homens quando eu me encaminhava para o final da construção do muro. naquele momento, de corpo fechado, como faço a ação performática, não pude escutá-los, mas após a apresentação o educativo do Museu de Arte Contemporânea me relatou que ambos trabalhavam com construção e acharam estranho eu fazer um muro no meio de uma encruzilhada da praça.
perceber na arte a capacidade de aproximar pessoas que habitualmente não são o público-alvo idealizado pela maioria dos espaços expositivos é importante. o que há entre mim e o pedreiro? talvez um tijolo, mas tantas outras questões podem surgir se abrirmos o diálogo.
durante a circulação desse trabalho, que já passou por Curitiba (2021), São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro (2023-2025), já escutei muitas associações do meu trabalho a outras questões históricas e até profissionais. dias antes de apresentar o trabalho em São Paulo, um dos funcionários no CCBB falava "você é o pedreiro?", eu achei graça naquilo e apenas disse que sim, estabelecendo uma rápida comunicação, mas convidando-o para presenciar a construção do muro.
nas encruzilhadas por onde o tijolo provocou certa atenção, escutei de um rapaz nas ruas de Curitiba "mó dahora esse muro de Berlim" e aquilo me levou para um outro tempo, outra realidade que não era a minha, mas que conectava simbolicamente o que eu fazia e o que tinha acontecido. travar um diálogo atemporal parece um papel interessante que essa jornada tem feito.
os muros estão sendo feitos, construídos em silêncio, assim como coloco o meu corpo para esse ofício, sem abertura para o diálogo enquanto performo, faço ruídos e deixo que a matéria exale a capacidade de conexão entre a estética, visual e sonora presente na ação e a brutalidade que essa construção pode provocar no outro.
escutando meu nome e as tentativas de contato em todos lugares por onde passei, senti curiosidade de saber para onde o meu silêncio levou as pessoas que tentaram interagir comigo sem sucesso, vendo o muro se erguer.
ninguém constrói muros com ouvidos abertos, disposto ao diálogo. é preciso um corpo fechado.
parece contraditório uma obra que propõe a construção de um muro gerar tantos diálogos e possibilidades.
na itinerância da exposição Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira, pude circular por quatro estados com esse trabalho tão simbólico pra mim, marcando no último sábado, 29 de março, a quinta cidade onde ele esteve, sendo a primeira vez no Nordeste do Brasil.
ao lado de casa, na cidade de Salvador, primeira capital do país, abrimos a exposição no MUNCAB com a performance erguendo a versão mais alta do muro, uma provocação para pensarmos através dos vestígios que ficam na instalação, quais ações estão no cotidiano e contribuem para separação dos corpos, dos espaços e das oportunidades.
pensar que essa exposição chegou à capital baiana no final de semana de aniversário da cidade, uma data que faz parte do processo de colonização do que chamamos de Brasil, traz à memória que as construções contemporâneas dialogam com uma trajetória que nos marca enquanto povo.
__________
Davi Cavalcante (1994) é um artista multidisciplinar, pesquisador, produtor cultural e curador. Mestrando em Corporeidades e Interfaces: Somática, Performatividade e Artes Digitais pelo PPGAC na Universidade Federal da Bahia (2025 - Atualmente), é pós-graduado em Estudos em Teatro do Oprimido: Práticas Político-pedagógicas (2025) pela mesma instituição e graduado em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Universidade Tiradentes (2017). Possui uma produção artística acerca da comunicação, do corpo e temas relacionados. Utiliza fotografia, performance, audiovisual, colagem, instalação, entre outras linguagens, suportes e técnicas, acreditando que o suporte é auxiliar ao conteúdo da obra. Seu trabalho já foi premiado em 1º lugar no 27º Salão dos Novos (Aracaju, BR) e também participou da Creative Residency Cine Luso 2019 (Bruxelas, BE). Atualmente integra alguns acervos públicos, incluindo Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Fundação de Cultura e Arte Aperipê de Sergipe, Fundação Cultural Cidade de Aracaju e SESC Brasil. Nasceu em Aracaju (SE), mas possui a compreensão de que os territórios são apenas fronteiras, não limitando a sua circulação.