15 de abril de 2024 | Jhon Eldon
1 - Quando pensamos numa temática possível para o II Salão Serigy de Arte Contemporânea (Galeria Bibok, 2023/24), um fosso de dúvidas se abriu em torno de nós, e começamos a refletir sobre uma série de questões que nos atravessam: o que é fazer um salão de artes visuais de modo autônomo e autogestionado, no contexto do FASC, que tem seu próprio salão institucional?; por que evocar a memória do Cacique Serigy ao nomear esse evento artístico, que se propõe a ser um desvio, uma contra-história em relação ao festival e sua consequente institucionalidade estético-política? Ao olharmos o fosso que se abriu a partir dessa reflexão sobre nosso próprio fazer, muitas lacunas em nossa historiografia das artes visuais locais ficaram evidentes, sobretudo a da “autoconsciência” de uma história da arte possível — coadunada, menos fragmentária, uma possível história da arte sergipana —, se apresentaram como "inimigas" em pronto ataque a nossa criatividade para articular saberes sobre passado e presente, continuidade e ruptura, arte oficial e vanguarda, como questões sempre articuladas, digamos "clássicas", dos eventos/fenômenos denominados "Salão de Artes Visuais".
2 - Certa vez, enquanto discutíamos a metodologia de produção do salão na residência de um artista amigo nosso, aproveitando também uma situação de confraternização — era sua despedida das terras sergipanas rumo ao "berço da arte ocidental", na Itália, segundo uma mórbida teoria histórica da arte colonial e colonialista em que muitos de nossos pares acreditam de diversas maneiras, cientifica, histórica, ficcional; mas sempre o que me salta à percepção é o caráter devocional com que se propaga essa história, logo, subjetivo, fixado como verdade, a partir da qual uma relação dialética com nossa própria história da arte se estabeleceria. Na casa desse amigo artista, observei atentamente uma placa impressa com o símbolo heráldico do Governo do Estado de Sergipe impresso sobre fundo branco em material tipo lona. Nosso amigo artista revelou que encontrou aquele material no lixo. Na sua parede, a placa possuía status de obra (readymade) ao lado de trabalhos do próprio artista. No momento, discutimos sobre como operar um ataque à narrativa proposta pela representação desse ícone. E a conversa findou.
3 - Em casa, depois, reunindo insights para compor uma chamada direcionada a mobilizar artistas para participar do salão, a memória dessa circunstância me ocorreu, sobretudo o brasão e as múltiplas camadas de sentido quando de sua presença na parede da casa de um artista, a presença de um indígena (que até então desconhecíamos ser uma representação do Cacique Serigy, que dá nome a nosso evento, segundo fontes oficiais), a discussão calorosa regada a vinho e com muito bate-boca pró e contra o ícone, a retomada do plano de ataque... a palavra PORVIR. E seu quase óbvio direcionamento à ideia de futuro, o que virá, a posteridade, uma categoria eminentemente filosófica entranhada em qualquer manifestação/aparição do fenômeno que ousamos nomear como Arte... Quando traduzimos a expressão em latim presente no símbolo ("sub lege libertas", comumente traduzida por "liberdade sob a lei" ou "sob a lei a liberdade"), entendemos qual seria nosso plano de ataque: iniciando por uma apropriação (que aqui chamamos "hackeamento", aludindo à ação do hacker de se infiltrar em lugares virtuais proibidos — o ícone simbólico do estado de Segipe é esse lugar virtual "intocável") de algo que supostamente representaria a diversidade de nossas unidades, em suma, um símbolo do governo que paira sobre nós, queiramos ou não. Certamente, uma postura iconoclasta nos inspirou, e também autorizou, a repensar as camadas semânticas que revestem este ícone.
4 - Então, para orientar o tema do II Salão Serigy, utilizamos o slogan e categoria filosófica PORVIR, presente no símbolo; e também alteramos a frase em latim para "Terminus ad Legem", que o Google traduziu como "Acabem com a Lei". Por último, quando uma configuração de cartaz estava finalizada, aguardando divulgação, tivemos a ideia de mudar sua configuração visual de cor: antes, o card possuía fundo branco, com o símbolo heráldico ocupando a centralidade; depois, aplicamos um filtro que deixava a imagem em "negativo", semelhante às películas fotográficas. O que era branco ficou preto e vice-versa. Essa configuração visual deu o tom à crítica que fazemos em relação ao contexto político, social, estético, econômico, ambiental, climático, que estamos vivenciando. Como se a cor preta indicasse a situação de uma noite, a escuridão dentro da qual precisamos entender e localizar a vida e suas vicissitudes, segundo Castiel Vitorino Brasileiro.
5 - Também foi rápida a sinapse que conectou a palavra PORVIR ao conceito filosófico "o futuro é ancestral", de Ailton Krenak, corroborando também os ensinos de Leda Maria Martins e sua leitura do tempo como uma linha... espiralar em movimento de sucessão e retorno. Percebemos nesse traçado conceitual uma potência crítica para nortear a perspectiva de onde partiríamos rumo a uma orientação temática possível que alinhavasse os trabalhos que os/as artistas participantes da seleção proporiam. Retornar para avançar: eis um sentido que parece complementar a ideia desoladora da palavra PORVIR presente no brasão heráldico símbolo de nossa sergipanidade — uma categoria evocada aqui aleatoriamente. A princípio, pensei na metáfora como operação de retorno às formas e às características artísticas do passado — diga-se: as canonizadas, que se confundem com estilo, suporte, material, geração, ideias-fins sobre o que a arte pode ou deve ser, enfim sobre o que é arte —, e, consequentemente, em como os trabalhos expostos evocariam o passado em suas presenças, corroborando ou negando-o. É nesse momento, em que tento perceber as formas do passado, sobretudo as genealogias de nosso local — para formular alguma ideia sobre desenvolvimentos possíveis a partir das produções contemporâneas, ou mesmo qualquer cartografia que permita traçar uma localização dos interesses, das questões, dos modos de produção dos artistas participantes — que a noção de "contemporâneo" reaparece. Em algum momento nos esquecemos dessa outra categoria, relativa ao tempo, que recorta enfaticamente os modos de operar de nosso evento. Mas, contemporâneo em relação a que passado?
6 - Em se tratando de arte contemporânea, qualquer relação com o passado está suspensa (exceto quando algumas propostas de artistas que se valem de estruturas, práticas, poéticas, obras, estilos — inscritos na história, utilizados como citação ou mesmo refazendo essas obras/discursos/narrativas para criticá-las). Algumas teorias nomeiam a arte contemporânea a partir de outras perspectivas: arte pós-moderna (como sucessão à arte moderna e seu sistema produtivo — materiais, suportes, ou mesmo a própria ideia de desmaterialização da obra de arte como tendência anticapital), arte pós-histórica (porque um certo modo de contar/narrar a história da arte chegou a um fim teleológico, toda história da arte teria chegado, enfim, ao fim, estando a arte contemporânea liberada de continuar o legado da arte do passado), antiarte (porque, diante do esforço de crítica de muitos/as artistas, o alargamento filosófico da compreensão de categorias como obra-prima, artista/autor, estilo, geração colocou em cheque instituições, discursos e modos de conceber e perceber a arte). Sublinhando a realidade do II Salão Serigy de Arte Contemporânea, compreendemos que as obras inscritas na chamada e selecionadas pela curadoria correspondem a uma multiplicidade de procedimentos, materiais, poéticas, articulando/atualizando formas/noções oriundas da arte do passado (fotografia, pintura, objeto, desenho, vídeo, etc.), dialetizando o cenário/contexto/conjuntura em que as obras/trabalhos se inscrevem.
7 - Então, a partir desse percurso, dessas problematizações, selecionamos obras e artistas que reagiram à provocação presente no título e material de divulgação da segunda edição do Salão Serigy. Só para constar, atribuímos ao grande cacique insubmisso o nome do evento que produzimos — e que pretendemos inscrever como tradição, seja como desvio, anti-institucionalidade, oportunismo, contra-história, empreendedorismo, negócios e mercado, seja como uma preocupação nossa em acompanhar o desenvolvimento de uma cena que está despontando, internacionalmente, inclusive — porque seu nome está cravado em nossa ancestralidade territorial direta, inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, sem comentar todo contexto da "virada decolonial da arte brasileira", para utilizar a expressão de Alessandra Simões Paiva. Exaltar o nome do cacique também tem relação com a evocação de sua força de resistência à dominação, qual seja ela, de onde venha.
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[¹] Este texto faz parte do catálogo do II Salão Serigy de Arte Contemporânea: Porvir — disponível na biblioteca da Tilápia-azul a partir de 20 de abril de 2024.
Na imagem de capa, uma cena da vídeo-performance Preto Rosário (2021), de Wendel Salvador, obra que fez parte do Salão Serigy.
Cartaz de divulgação do II Salão Serigy de Arte Contemporânea: Porvir, 2023
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Jhon Eldon é educador popular, produtor cultural e curador independente. É sócio-fundador da Bibok Cultural.