24 de outubro de 2023 | Luís Matheus Brito
I
Este texto é injusto com o objeto artístico de que fala. Melhor dizendo, com a experiência de que fala. A performance Rio, sim, de Euler Lopes. Aqui, não tenho como reproduzir a fissura no real a partir da qual o olhar se ficcionaliza, nem sequer a abertura para o risco de, cumprindo o percurso, alterar os códigos comportamentais em público. Desaparece, no texto, todo o efeito ao qual estamos sujeitos ao participar da performance, um truísmo do qual, por enquanto, prefiro não escapar: as competências são distintas, uma vez que Rio, sim é uma coisa e este relato, outra. Isso, é claro, faz parte da minha posição de participante que está prestes a prolongar a experiência, escrevendo.
No texto, porém, o leitor está sujeito a outra experiência, aquela que só pode surgir e perdurar enquanto houver leitura. O texto, este espaço para o qual se transfere uma memória cada vez mais acidentada, desarmoniosa, sobre a hora em que enlacei minha mão com a mão de Euler Lopes, a condutora.
Para nós, a hora decisiva.
II
Uma contradição é o elemento com o qual temos de lidar do início ao fim da performance. O fato de contarmos com a presença de Euler Lopes durante o percurso, mas não contarmos com a voz. Ao menos, a voz que não é virtual, nem é mediada por aparelhos. A voz tal como ela é. Em vez disso, temos acesso a uma voz do passado, aquela que foi registrada pela artista e depende dos dispositivos móveis para se manter ativa a cada etapa de Rio, sim. Para os participantes, Lopes envia áudios que estabelecem a contradição e atualizam-na. Nós, participantes, conhecemos o roteiro da performance aos poucos, justamente por meio dos áudios.
Começamos sozinhos. Ouvimos o primeiro áudio no Café da Gente Sergipana, no museu de mesmo nome. Lá, em minha vez, as mesas estavam cheias, logo recorri a um dos bancos na entrada do café. Em seguida, pus o áudio para tocar — instante no qual me lancei ao dispositivo performático, uma vez que, daquele momento em diante, a performance dependia tanto de mim quanto da condutora. Do meu corpo, da minha presença. Quem participa de Rio, sim, é menos público que cocriador. Não se assiste a ela. Mas, sim, assume-se o risco de vacilar a qualquer instante e, assim, perder o fluxo, o traquejo, diante das investidas externas. Em Rio, sim, condutora e participante precisam da competência de “saber-ser”, como diz Paul Zumthor¹. O “saber-ser” é um pré-requisito, assim como o celular e o fone de ouvido.
O público é o que está do lado de fora do dispositivo performático. Nele, aliás, assumo uma postura capaz de modificar meu olhar, a maneira como repouso os olhos no mundo, até porque o lugar permanece o mesmo, mas noto uma diferença assim que ouço as primeiras palavras que irrompem do áudio: “talvez você se pergunte por onde vou surgir” — mas Lopes não surge de lugar algum. Continuo sozinha até o último minuto no café. Lá, ficcionalizo com o olhar. Mesmo sem contar com a presença da condutora, me sinto responsável pelo efeito de ruptura que a performance provoca. Suspendo o vínculo com o real. Agora, meus sentidos agem em função de Rio, sim, em cujo centro está a reflexão sobre o trabalho artístico — as condições de produção e, sobretudo, as formas de subsídio, ou seja, o que pode garantir a continuidade da atividade artística; ao mesmo tempo, as condições de vida, elementos que, no geral, se confundem. Aliás, o café é um lugar onde Lopes escreve e, sempre que possível, se encontra com outros artistas. Lugar de trabalho por excelência.
No início, uma afirmação pode chamar a atenção tanto quanto as outras: a voz metálica, o modo como uma diretora de Teatro classificou a voz de Euler Lopes. Para a condutora, uma maneira de apontar para a qualidade não masculina da voz. Metálica ou não, ela é onipresente.
III
Seguindo o roteiro, eu saio das instalações do café e me encontro com Euler Lopes no Largo da Gente Sergipana, na margem do Rio Sergipe, logo depois de abandonar a hesitação que me acompanha enquanto atravesso as duas faixas da avenida Ivo do Prado — a performance também é sobre essa abertura para o acaso, pois não sabemos se, no dia e no horário marcados, pode chover, ou se, atravessando a avenida, um automóvel pode parar em nossa frente de maneira abrupta, ou se o público, vendo-nos de mãos dadas, pode romper o laço que nos liga ao efeito de suspensão da realidade. Contamos com a sorte, mas não só.
Na margem do rio, olhamos para o outro lado, a cidade onde mora a condutora, a Barra dos Coqueiros. Olhamos de esguelha, como se, na performance, só houvesse abertura para esse modo de ver. Paradas, olhamos de esguelha o rio e, noutro momento, a antiga Casa Rua da Cultura, a ruína, já na terceira etapa: lá, Lopes participou de oficinas de Teatro e assistiu a espetáculos; falando dessa experiência, relembra o contato amoroso e o contato com o assédio — memória para a qual se olha de maneira oblíqua na maior parte do tempo. Caminhando, porém, modificamos o ângulo. Vemos a paisagem de frente, sem recuos, sem subterfúgios. Aos poucos, nos despedimos do modo oblíquo que se instalou na visão. Eu, sendo mais alta que a condutora, não consigo emular os passos dela. Não compartilhamos o ritmo, não estamos em sintonia, exceto pelos olhos. Me esforço para prever a distância que os pés vão percorrer entre um passo e outro. Mas produzimos um atrito quando, às vezes, as pernas se chocam, o que não nos impede de seguir o roteiro de ponta a ponta.
A essa altura, Rio, sim cristaliza uma reflexão em mim. Percebo, no público, um nó que jamais se rompe, que só se mostra para quem pode, por um instante, desatá-lo. É o nó que se impõe como natural em nosso dia a dia e define os códigos que compartilhamos ao andar na rua e interagir com os pares. Durante a performance, eu e a condutora rompemos o nó, por isso somos vistas com estranhamento. Somos o desvio exposto à luz do dia. Permanecemos na operação de rompimento temporária que demonstra a qualidade de marionete que, agora, vemos no público, mas que vai tomar conta de nós em breve. Somos parte do conluio, também — uma adesão involuntária que se faz, na medida do possível, com interrupção e rompimento ocasionais.
Continuamos a empreitada, e uma música se soma aos relatos, enquanto a tarefa de condução se divide entre mim e Lopes, que, pouco antes, pede que entremos na Rua Pacatuba, à nossa direita. A música “Cansado”, de Alex Sant’Anna, redefine o ritmo: pela primeira vez, aceleramos. Chegando ao Bar Corujão, na Praça da Catedral, nos dividimos. Aí vejo a condutora do outro lado da rua, na outra calçada. Ela me fotografa. Mesmo distante, posso ouvi-la com clareza — ela também ouve a si mesma: uma voz metálica que é onipresente graças aos fones de ouvido. Observamos uma à outra. Eu também a fotografo, até a hora que, por meio do áudio, ela me indica que podemos ir ao Cinema Vitória, a próxima parada, sem dar as mãos. Em silêncio, construímos mais uma camada de intimidade, na medida em que ele implica cada vez menos constrangimento. Um tipo de resistência.
IV
Diante do rio, enlaçamos as mãos.
Enquanto estamos no Largo da Gente Sergipana, ouço a história de Savanna, a amiga de Euler que ali jogava cartas — de agora em diante, prefiro modificar a hierarquia entre nome e sobrenome, postulando, aqui, outra relação com os sujeitos dos quais falo. Savanna, a amiga do ensino médio com a qual a condutora não tem mais contato. A história, pois, é anterior à inauguração do largo e do museu. A história é rememorada para demarcar uma origem com o Teatro. A origem é dispersa e, ao mesmo tempo, o fim. Pura ambiguidade. É uma afirmação dentro da qual há espaço para a negação. Se diz não até que se diga sim. E vice-versa.
Anos depois, fui ao largo com um amigo, o Bruno, que, no fim da tarde, me convidou para descer até o atracadouro de madeira, graças ao qual podemos tocar as águas do Rio Sergipe. A maioria das pessoas não consegue vê-lo, acredito. Antes daquele dia, inclusive, eu não sabia da existência do atracadouro que fica entre as estátuas, no meio do monumento. Para Bruno, falei das últimas experiências amorosas e do fracasso que as acompanhava: no contato íntimo com o outro, o desequilíbrio é a norma, afinal. A perda do juízo, como diz Euler.
Quando anoiteceu no atracadouro, fiz uma promessa. Mas a escondi de Bruno a fim de garantir o segredo e, em alguma medida, o vínculo com o mágico, que, na experiência amorosa, pulula para todos os lados. Em vez das cartas, então, recorri ao pensamento. À fixação de uma imagem. Ao desejo, que — em mim — não cessa de produzir a imagem de um encontro nas margens do Rio Sergipe.
V
Entramos nas últimas etapas de Rio, sim. Estou cada vez mais suscetível ao cansaço, a me entregar a ele, parafraseando Alex Sant’Anna. Mas continuo, continuamos, e Lopes propõe um exercício de imaginação. Que pensemos que, em vez do salão de entrada do Cinema Vitória, estamos num teatro, assistindo à peça de nossa preferência. É outro uso do desejo a fim de produzir uma imagem. Nesse caso, o desejo vinculado a uma memória, ao passado, diferentemente do desejo vinculado ao futuro, quando o que não ocorreu pode emergir no porvir, tornando-se matéria profética. Na fala da condutora, há um exemplo do desejo como produtor de imagens. As dramaturgias, os espetáculos, as performances, tudo aquilo que espera o momento oportuno para a materialização. É um ensaio para o futuro, ao qual temos acesso na última etapa da performance.
Do cinema, caminhamos para a ação derradeira, atravessando as ruas do calçadão, no Centro. Mais uma vez, de mãos dadas. Chegamos ao Porto de Tototós, transporte com o qual Lopes costuma voltar para casa, na Barra dos Coqueiros. Ou seja, tudo é familiar em Rio, sim. Nada é estranho à condutora, nem a mim, participante, que conheço o percurso. Mas o efeito de estranhamento não deixa de se atualizar, pois estou diante do roteiro dela, da condutora, perdendo o vínculo com o real. Estou submetida às necessidades da performance. Ao saber-ser.
Ouvimos, no porto, a música da qual Euler Lopes extraiu o título do trabalho: “Rio Sim”, de Patricia Polayne. Antes de reproduzir a música no áudio, Lopes ri de si mesma ao se lembrar da cópia — é a voz do passado que, do início ao fim, conduziu o meu corpo e o corpo de Lopes. É a voz que, desvinculada do corpo, impõe a ação definitiva e performática. O abraço, a despedida. E, para que a condutora retorne ao Café do Museu da Gente Sergipana a tempo de iniciar mais uma sessão, apenas isso — o abraço. Sem corpo e sem voz aos quais posso me alinhar, estou desamparada. Vejo de esguelha Euler Lopes retornar ao começo, abandonando o porto. Talvez eu seja, mais do que nunca, o elemento oblíquo na paisagem.
__________
[¹] Performance, recepção, leitura, de Paul Zumthor (tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich), Ubu Editora, 2018.
Euler Lopes durante performance Rio, sim, em Aracaju (Fotografia: Luís Matheus Brito)
__________
Luís Matheus Brito (1994) é poeta, ensaísta e mestra em Estudos Literários pela UFS (Universidade Federal de Sergipe). Publicou Guia de Queixumes (edições blague, 2021). Edita a Tilápia-azul.