6 de outubro de 2023 | Luís Matheus Brito
O comportamento do público durante uma sessão de Respire - A manifesta, do Grupo Caixa Cênica, chama tanto a atenção quanto o trabalho dos atores, com os quais o público, aliás, encena pouco a pouco. Nessa encenação, o que pode definir o limite entre estes e aqueles é a formação de círculos ou semicírculos a cada vez que há um convite à interação. Inibido, o público pode estranhar uma das primeiras afirmações do espetáculo: “Vocês foram enganados. Não é teatro.”, diz Diane Veloso, que contracena, sobretudo, com Audevan Caiçara e Jonathan Rodrigues. Eles contam com o apoio de Matheus Andrade no vaivém ao qual está destinada toda a sessão de Respire — a festa que, no trocadilho do nome, está dada como tal.
Para escrever este comentário, me baseei na apresentação no Grupo Imbuaça, durante o Festival de Artes Cênicas, em Aracaju — cuja data foi 30 de setembro de 2023. A primeira vez que assisti a Respire, porém, foi em novembro de 2019, na Casa 10, a antiga sede do Caixa Cênica, também em Aracaju. Logo, vi dois modos do espetáculo, separados no tempo e no espaço, sendo este um elemento que, por sinal, torna-se medular para a transição das cenas, mas de maneira atípica. Em vez de palco e plateia, assistimos ao jogo cênico indo de cômodo em cômodo, nós — o público — tão inquietos quanto os atores. Daí, acredito, instala-se um desejo de retornar ao modelo tradicional de teatros e anfiteatros, dentro dos quais não ultrapassamos a ribalta, nem atores, nem espectadores; certamente, há segurança quando se dispõe de uma dinâmica convencional, por isso, quem ousa abandonar a posição passiva, pode sofrer represálias de quem prefere um modelo ao outro. No Imbuaça, íamos do salão de entrada à cozinha, que é ligada a um pátio. Esse ziguezague só se encerra quando o trio, Caiçara, Rodrigues e Veloso, irrompe na rua.
Na medida em que os atores se envolvem com o público, um pacto é firmado. A negação do teatro, cujo símbolo pode ser a fala de Diane Veloso, que assume as ações, da primeira interação em diante, como o não teatro. Mas a negação, ela também, é contrariada a todo instante. Numa hora, ouvimos de Jonathan Rodrigues: “É melhor voltar para a peça.” Noutra hora, Veloso reconsidera: “Calma que a gente está numa peça. É uma fábula da esperança.” Ou seja, uma negação da negação. Em seguida, Rodrigues oferece uma solução para definir o espetáculo: “Pague de louca e diga que é performance.”; mas a solução é provisória. O que está em disputa, então, é a permanência do contrassenso, um dos condutores do espetáculo. Isso, por sua vez, produz efeitos discrepantes no público, que ou acompanha as investidas dos membros do Caixa Cênica, sendo coparticipante dos atos, ou paralisa, percebendo que, ali, não há espaço para um espetáculo tradicional, senão para a ruptura. Na ruptura, o que vale é menos a estabilização — em sentido amplo: do corpo, da fala, do gesto etc. — e mais o embaraço, a ironia, a vergonha.
Há um elemento, em Respire, cuja capilaridade é inegável: a comida. Ela é o instrumento do contrato entre atores e público, por isso que, antes da chegada do trio principal ao jardim do Imbuaça, somos recepcionados por Matheus Andrade, que carrega uma bandeja de alumínio na qual estão guloseimas (amendoim japonês e jujuba). Ele não para de distribuí-las nem sequer uma vez. É uma maneira de iniciar a locomotiva e mantê-la em funcionamento, de atrair as pessoas para uma sequência de atos na qual vemos a justaposição de traços biográficos dos atores com invenções da dramaturgia. E o improviso, nós também o vemos. Assim como as celebrações dos santos Cosme e Damião, a comida é um signo imprescindível para o ritual Respire — se quisermos redefinir a manifesta, pois, podemos pensar em ritual, mas em ritual sem virtudes religiosas, por mais que, nele, afirmem: “Santo, santo, santo. Todo mundo é santo.” Uma festa também implica uma prática ritualística. Uma prática profana, ao final da qual distribuem um cuscuz que, na cozinha, é preparado enquanto participamos do ziguezague. O cuscuz — comê-lo é a ação derradeira.
Mas o que é indefinido, por excelência, é a capilaridade do improviso. Uma vez que nesse ritual o improviso possui tentáculos em todos os atos, de atores e de não atores, nós não sabemos até que ponto um efeito é proposital. Até que ponto o constrangimento e o riso diante de uma afirmação racista ou elitista, por exemplo, são propositais, até que ponto lançar-se ao chão, também não o sabemos. A indeterminação é uma regra.
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Luís Matheus Brito (1994) é poeta, ensaísta e mestra em Estudos Literários pela UFS (Universidade Federal de Sergipe). Publicou Guia de Queixumes (edições blague, 2021). Edita a Tilápia-azul.
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Na imagem de capa [esq. à dir.], Audevan Caiçara, Diane Veloso e Jonathan Rodrigues. Fotografia: Jhon Eldon.