23 de julho de 2024 | Luís Matheus Brito
O imaginário popular é um tablado sobre o qual Fael Rocha dispõe as obras da exposição Sertão dos meus confins, na Galeria de Arte Sesc Cícero Alves dos Santos - Véio, em Aracaju. É desse lugar que ele extrai substâncias discursivas e imagéticas. Assim, uma paisagem semiárida é recorrente nas peças, que acumulam técnicas, como pintura com tinta acrílica, em cima de madeira ou papel kraft. Uma escolha que, para o visitante, pode representar pouca ou nenhuma diferença, exceto para quem se aproxima das obras a ponto de ver o avesso. Para a produção, porém, equivale a uma ambiguidade: são materiais de resistências distintas, logo exigem disciminação na hora do corpo a corpo. Isso não interfere na homogeneidade — homogeneidade que é preservada pela figura humana onipresente e pela paleta de cores, na qual o amarelo, o branco, o marrom e o vermelho predominam, homogeneidade que, digamos, atinge um limite. A sequência das obras é, ela mesma, um confim.
Na exposição, a figura humana faz um ensaio para a introspecção. “Filho do Sol”, obra que forma um díptico com “Filho do Rio”, introduz esse percurso. Vemos, primeiro, um dos lados do corpo em posição fetal, contorcendo-se. Vemos, no par, a frente desse corpo, que, sempre sem cabeça, assemelha-se à figura do artista. Uma representação em vermelho e esguia. Ela está em transfiguração, na medida em que absorve elementos naturais, sobretudo da fauna e da flora, noutras peças. Talvez esteja aí o ponto mais frágil do trabalho. Composições como “Pássaro Luminoso” e “Catingueiro” não se desviam dos lugares-comuns do imaginário sobre o sertão. Nem provocam estranhamento, já que estabilizam e idealizam as formas visuais mais associadas a ele. O cacto, por exemplo. Mas o mérito é indiscutível: o estilo de Fael Rocha instala um ritmo nas paredes da galeria.
Agora, a obra medular de Sertão dos meus confins está mais ou menos de escanteio e noutra linguagem — projetada numa parede pouco privilegiada na expografia. A videoperformance “Corpo Caatinga” expõe o artista nesse bioma, assim como a figura humana que o representa nas pinturas, em contato íntimo com a paisagem. Ao longo de sete minutos e vinte e um segundos, vemos detalhes — costas, mãos, membros inferiores, membros superiores, peito e pés —, de modo que o corpo do artista se inclina para um arranjo espectral. Ou, melhor dizendo, divino. Na mitologia desse sertão, a divindade — ou, como indica uma das obras, o “Nume” — está ao alcance da vida humana. Aí reside um motivo pelo qual o sublime ronda o trabalho de Rocha. Aí reside, inclusive, um motivo pelo qual a videoperformance é mais bem-sucedida ao revelar o divino no humano. O divino vinculado ao telúrico.
Se se aproxima de alguma personagem mitológica, aproxima-se de Ícaro, que, depois de voar perto do Sol, caiu. Ainda que as telas de Fael Rocha indiquem a ascensão e a queda de uma figura humana, há diferenças. Nesse caso, as asas são incertas e um pai-tutor, como Dédalo, não está à disposição do filho. O que se observa, aos poucos, é a flutuação em peças como “Lírico” e “Lunático”, em cuja parte inferior os pés humanos roçam uma nuvem. Há, no entanto, um par de obras que reforça a ligação com o mito de Ícaro: ”Pleno Voo” e “Mergulho Profundo” aspiram à façanha, pois, nelas, o corpo em movimento retilíneo toma posições diametralmente opostas. E um jogo se estabelece a partir dessa disparidade — o olhar apressado pode ignorá-lo, aliás. Está nos planos de fundo a mudança substancial: uma hora, estamos submersos e, noutra hora, em queda livre.
Sertão dos meus confins, de Fael Rocha
Galeria de Arte Sesc Cícero Alves dos Santos - Véio
(Rua Senador Rollember, nº. 77, bairro São José, Aracaju)
22 de julho - 30 de setembro de 2024
9h30 - 18h30
Entrada gratuita
__________
Fael Rocha é natural de Sergipe e nasceu em abril de 1995. Graduado em Artes Visuais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), em São Cristóvão, integrou o coletivo de artes visuais Estesia (2021-2022), no qual elaborou e participou da MCE - Mostra Coletivo Estesia, que teve por finalidade compartilhar com o público em geral as pesquisas desenvolvidas pelos artistas dentro do contexto da pandemia. Cocoordenou o espaço criativo Ateliê Magalenha, onde elaborou a pesquisa visual sobre Identidade Regional, Cangaço e Gênero, resultando na intervenção urbana "Ser Tão Daqui", um mural realizado em sua cidade natal, Poço Redondo. Atualmente, desenvolve trabalhos em parceria com artistas locais do cordel e da música popular, com os quais estabelece conexões artísticas acerca das raízes nordestinas que entrelaçam seus universos criativos.
Luís Matheus Brito (1994) é poeta, ensaísta e mestra em Estudos Literários pela UFS (Universidade Federal de Sergipe). Publicou Guia de Queixumes (edições blague, 2021). Edita a Tilápia-azul.