25 de outubro de 2023 | Kauam Pareira
Resta uma restinga risonha rio abaixo
Abaixo bem devagar e apanho uma pedra
Pena não poder tacar solto no tempo
Também a memória do seu olho de brita
Pinga o pus da ferida pungente
Toda gente nesse tempo já sabia que o rio que corre pra restinga
Restituía os tecidos do peito
Corro sem jeito pela areia fofa
Formando com pés uma trilha pretérita
Você parece o menino Jesus de presépio na memória do meu peito
Chego ao rio meio sem jeito
E a tua manjedoura boia emborcada
Apanho uma canoa e remo até bem perto
Longe da beira
Beijos demorados insistem em me desconectar do presente
Resisto
Não sou o mesmo mas
Subo a correnteza convicto de te encontrar na curva
Não era sobre você a peregrinação
Era a cura da minha carne
Abandono a canoa à deriva
Agora vou a nado
Nódoa de caju por toda a roupa
Marcas de tempo e de espaço no corpo
A geografia que emoldura a água parece o seu rio
Aqui não me afogo
Arfando afago raízes de mangue
Temo os animais submersos
Mas não tenho escolha
Dobro outra esquina
A essa altura a água é fria
Esses são os últimos dias de minha memória
Te mando um beijo através de uma tartaruga
Ela nunca chegará a tempo por isso sorrio sozinho
A minha cara de dor é também a minha cara de graça e de prazer
Já próximo do entardecer cantarolo aquela canção silenciosa
Na água meu corpo serpente desliza
Completamente integrado à paisagem
De passagem peixes beijam o meu tronco
Trago no bolso migalhas de pão que os atrai
Agora choro
Os lilases cicatrizam meu rosto
Enquanto a esfera em que estou contida finda mais uma volta sobre si
Que sabe a esfera sobre si?
Que nunca enjoa da dança rotativa dos planetas
Veja como a tarde me exterioriza
A sua memória risonha não dói nem traz conforto
É apenas uma memória como quando lembro que esqueci de comprar o pão
Como então qualquer coisa
Preciso me manter desperto
Ponho o despertador para as quinze para as cinco
Não acordo
Nem sonho
Meu corpo de rio e restinga se mantém resistente
Apesar do monóxido de carbono me proponho a brotar novos filhos
Quem sabe eu floresça esse ano
Não me imponho um nexo
Mas anseio por um motivo
Deito meu ouvido na areia fina
E finjo escutar seus restos
Fundo
Sugo os nutrientes de que careço
De novo sorrio
Uma canção cantarolada vem da cozinha
Os odores plasmam
Mentira
Improviso uma panela e preparo o ajeum
A sua memória me pede para jejuar
Jesus Cristo eternamente crucificado
Pobre filho dessa gente misturada
Desço as escadas na esperança da novidade
Novamente me frustro e pesco frutos do mar
O segredo nas conchas cochicham o sal da vida
As feridas cicatrizam até mesmo com a brisa
Bebo o oceano que são os seus e os meus olhos
Soltar a sua mão é a única aventura que não posso contar
Os cactos da restinga permanecem em silêncio
E o vale do silício produz as novas necessidades e vícios
Acordo e parto um limão em bandas
Penso no seu sorriso de mau hálito matinal
Que mal faz os odores que os corpos produzem
Me proponho ao esquecimento dessa vez com força
Não sei se foi de brincadeira que a vida me escolheu
O piso da casa é frio
Tal qual o fio da meada
Não resta nada além de uma estante de ferro y utensílios de cozinha
minha sorte só padece com gente da cor morena (paleta de pintura sobre pinhole, 32 cm x 38 cm, 2023), de Kauam Pereira
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Kauam Pereira nasceu em Alagoinhas (Bahia), em 1990, e reside em Aracaju (Sergipe). Artista visual, frequentou a Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, em 2011, e passou tanto por cursos livres de gravura do Museu de Arte Moderna da Bahia quanto por espaços independentes de formação em arte. No trabalho artístico, reorganiza elementos do cotidiano por meio do desenho, da pintura e da escultura, partindo de movimentos como a apropriação e a observação, a fim de produzir discursos abertos; a partir de um imaginário comum, tenta gerar algum nível de reflexão sobre discussões de gênero, sexualidade, masculinidade, reprodutibilidade, regionalismo e memória. Produz obras que mixam vivência pessoal, ficção e reflexões sobre este tempo.