11 de setembro de 2024 | Clara Dias
ladeira abaixo
O prédio tinha 20 andares. A garagem ficava no primeiro e a entrada no térreo, virando a esquina. Havia três elevadores na construção. Naquela segunda-feira, o senhor de bigode tinha uma consulta marcada com a dentista e, às 14h, seu genro e sua neta esperavam no carro parado em frente ao edifício onde o sogro morava. Ninguém diria que as paredes conhecidas há cinco anos se tornariam labirinto para o morador do condomínio.
Preocupado com a pontualidade, o genro ligou para avisar que estava a postos e o sogro respondeu que estava se encaminhando à porta. Um minuto se passou, dois, três, cinco, dez, e nada dos passos arrastados do senhor de bigode serem avistados da portaria. Seu genro já se alertava. Teria ele tropeçado e caído? Ligou de novo. Fazia tempos que ele havia descido. “Cadê ele?”, a família se perguntava de dentro do veículo.
Pelo olhar periférico, um movimento foi percebido na rampa da garagem em espiral. Passo a passo, bem devagar, o senhor de 84 anos descia a ladeira íngreme, com cuidado para a sandália de borracha não derrapar e causar uma queda sem freios até o portão de ferro, um andar abaixo. A notável desorientação seria cômica se não fosse um sinal do início de um problema que eles não tinham como solucionar. Quem assistia ria, meio por graça, meio por desespero.
“Por que desceu pela rampa da garagem?”, indagou o genro quando ele finalmente conseguiu entrar no carro.
“Sei lá…”
“Apertou o botão errado do elevador e não soube voltar pro andar certo?”
“É, foi”, respondeu sem certeza.
Pelo retrovisor, pai e filha seguiram se entreolhando. Era difícil de acreditar até então, mas o velho conhecido não conseguia sair sem ajuda. A partir daquele dia, qualquer carona oferecida passou a ter a garagem como ponto de partida. Subir da rampa com o carro pareceu a melhor saída para evitar acidentes, uma vez que aquele era o caminho mais executado. Na mesma tarde, ao chegar à dentista, ele também não recordou o motivo da consulta.
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regime de compartilhamento
Na parede do quarto da senhora havia uma tabela com horários cronometrados para cada tarefa. 15h30 e a sua sobrinha parou de conversar para medir a insulina e aplicar a medicação requisitada naquele horário. Era seu dia na escala organizada entre a família para cuidar de quem esquecia.
O estágio de Alzheimer da tia já era avançado, mas a moça se lembrava de quando os lapsos de memória não eram tão recorrentes. Entre os esquecimentos que pareciam comuns para a idade e as palavras agressivas proferidas sem filtro, dizeres inapropriados começaram a fazer parte do seu vocabulário. Coisas que ela jamais admitiria que fossem faladas pelos seus netos passaram a rodear sua língua nos dias de tensão. Eles notaram que algo estava errado.
Possibilidades de resposta vieram de uma das jovens da família, psicóloga, que orientou à sobrinha intrigada a procurar a Associação Brasileira de Alzheimer
do estado. Contatos estabelecidos, consulta marcada e diagnóstico encaminhado - rápido e prático como tudo feito na casa mantida por várias mãos. O novo desafio não sobrepôs a fome por informação e a graça de uma
boa comunicação. Feliz com o atendimento e pronta para cuidar da família em sua melhor forma, a sobrinha intrigada se voluntariou para atender ao grupo de apoio da associação.
O diagnóstico médico abriu espaço para dezenas de novas vidas em seu caminho, traçado pela informação. Era o conhecimento que a movia e o conhecimento que expandia os passos insistentes em serem dados coletivamente. Em casa, obrigação dividida em dez. No grupo, cuidado compartilhado em vinte. Expandindo as paredes que direcionavam seu cuidado, ela compartilhava a certeza de que seguir os passos mapeados na parede do quarto da tia era um desafio simplificado quando solucionado por várias mãos.
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dos riscos os frutos
A atividade daquela tarde deixou curiosas as mulheres sentadas ao redor da fileira de mesas de plástico. Com um amontoado de pratos na mão, a facilitadora da reunião repetida todas as quintas começou a distribuí-los individualmente, enquanto espalhava tintas coloridas e pincéis por todo o grupo. Pedidos de explicações e confissões sobre falta de habilidades artísticas não pararam de surgir durante a entrega, mas a moça seguiu em mistério até terminar sua tarefa. Muitas encaravam o pincel intrigadas com o uso que fariam a seguir.
“Desenhem, pintem, esbocem o que esse grupo significa para vocês”. O burburinho após o comando foi de desalento ao não conseguir pensar numa ideia interessante em tão pouco tempo. O grupo se dividia em três tipos de mulheres: as mais jovens - cuidadoras das idosas ou entusiastas sobre o tema; as mais velhas com a memória intacta, que participavam dos encontros como forma de exercitarem a extensão cerebral e fazerem novas amizades; e as pacientes de Alzheimer, desnorteadas com a atividade.
O primeiro tipo debatia qual a melhor forma de disfarçar seus dotes de pintura; o segundo se divertia ao usar itens há muito não manuseados; e o terceiro encarava suas cuidadoras como quem pedia para serem guiadas por um túnel sem vista. Todas executaram seus desenhos, em diferentes níveis de dificuldade, e devolveram os pratos às mãos da facilitadora da brincadeira.
Ao terminarem, um novo pedido: explicar a proposta de cada arte enquanto elas eram exibidas para todas. Dali saíram as gargalhadas mais altas da tarde. Um cachorro numa viagem ao México, as duas mulheres mais tagarelas conversando alto suspensas no ar, flores ininteligíveis. Ainda assim, uma palavra se sobressaía, presente no centro de quase todos os pratos. Amor.
Por último, uma árvore brotava do papelão erguido para o olhar de quem estava presente, pedindo a explicação da jovem recém-chegada e insegura em relação ao que diria naquele momento. “A árvore significa o grupo. Os galhos, cada uma que colabora com ele. Agora, estão vendo esses pontinhos vermelhos? Esses são os frutos. E acredito que cada uma de nós levaremos os nossos frutos para casa”, disse, ainda um tanto encabulada.
O silêncio que procedeu a sua fala deixou-a sem graça, na dúvida se o sentido de sua pintura destoou do restante do grupo. No entanto, a cada vez que ela revisitava os galhos daquela árvore, relembrava a gratidão pelos frutos colhidos todas as quintas-feiras.
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cinza da cor do passado
Ela dizia que era índia e que era linda quando jovem. Seu riso ecoava por todo o salão enquanto dançava e jogava os cabelos lisos, já grisalhos, de um lado para o outro no ritmo do baião de quinta. Seu corpo ainda vívido buscava expansão, enquanto sua voz tinha o ar como aliado, travessia para os vibratos de cantorias sobre amores antigos.
Um amor a levou àquele lugar, ela contou um dia. Uma traição. Um coração partido. Unir-se a outras mulheres que esqueciam era um bom remédio para a sua solidão. E dançava, e cantava, e fazia piadas infames para morrer de rir. Ela queria entender o que tinha acontecido, queria ter conversado. “Descobri que te amo demais…”, a letra de Zeca Pagodinho era mais interessante que reviver seu passado toda semana.
“Eu era casada, hoje sou viúva”. A índia respondeu seriamente quando perguntaram o porquê de frequentar um grupo de idosos com Alzheimer. “Eu descobri que ele me traiu”. Vinte pessoas esperaram ela completar que tinham se separado e ele acabou falecendo anos depois. Ou que depois dos anos de separação descobriram nele um câncer de próstata.“Ele não aguentou a vergonha”. Infarto, então? “Pegou uma arma, apontou para a cabeça e POU”, ela sorria, com olhos distantes. “Bem na minha frente”.
Meses depois, o natal se aproximava. Em uma mesa comprida, junção de várias mesas quadradas de plástico postas lado a lado, o grupo montava árvores de natal recicladas. Ela não parava de tagarelar. Ria mais e mais alto. Piadas sexuais aos montes, constrangia as beatas lambidas de brilhantina.
“Estão rindo, né? Eu sou palhaça mesmo. A gente tem que rir da vida. Eu já contei que meu marido se matou? Ele teve vergonha porque me traiu. Mas era só ter conversado. A gente se separava e pronto. Cada um vivia sua vida em paz”.
“Você já contou essa história, amiga”, respondeu a senhora do lado.
“Eu ando esquecendo as coisas, sabe? Essa história toda me matou de desgosto. Um derrame em cima do outro. Agora ando esquecendo as coisas. Eu disse que o desgraçado fez isso na minha frente?”. Silêncio.
Árvore pronta e em pé, as risadas retornaram à roda. Ela, no entanto, não voltou a cantar naquela tarde.
§
onde está o garfo
A senhora de pernas curtas atravessou o oceano de avião para descobrir a razão de não lembrar a grafia da letra T no meio de seu sobrenome. Meses antes da viagem para os Estados Unidos, foi renovar o registro de identidade com a filha mais velha e precisou perguntá-la como soletrar o “Teixeira” em sua assinatura, o que causou estranhamento na moça. Nada além dos lapsos que ela apresentava há um tempo, como quando não sabia onde estava o garfo bem à sua frente na mesa de jantar.
Sua filha mais nova morava em Boston, onde estudava enfermagem e assistiu a sua mãe idosa, porém ainda jovem, perder-se nas ruas já conhecidas em suas frequentes visitas. Na volta para o apartamento em um bairro central de Aracaju, um crachá pendurado no pescoço com todas as informações pessoais mais importantes e um diagnóstico no bolso – Alzheimer.
Dali em diante, não saía mais desacompanhada, ou, ao menos, sem seu cartão de identificação. Adiantou a aposentadoria eminente e frustrou-se ao perder a mobilidade e a altivez de andar pelos quatro cantos da cidade sem dar satisfação a ninguém. Acostumada a viver ligada em 220v, como a filha costuma falar, sua mente não seguiu o ritmo do corpo - uma frustração por não poder viver os planos adiados para o tempo livre da terceira idade.
Os doze anos seguintes foram marcados pela perda. Primeiro a independência, depois o esposo cuidadoso, depois a flexibilidade dos músculos. Por hora, também a voz. Enquanto isso, a memória de uma mãe de liderança forte permanece em suas filhas, assim como a posição do garfo na mesa, que, enquanto as lembranças continuam a fugir, recusa-se a sair do seu lugar.
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Clara Dias tem 28 anos, nasceu em Aracaju-SE e desde criança é apaixonada pela escrita e pelos livros. Hoje, jornalista e mestre em Comunicação pela UFS, Clara tem experiências no jornalismo independente e literário, audiovisual, fotografia, marketing e assessoria de comunicação. “Onde está o garfo” é a sua primeira publicação e reúne crônicas sobre mulheres que convivem com o Alzheimer. O livro foi fruto de uma imersão jornalística e poética em um grupo de apoio a idosos com Alzheimer e uma série de entrevistas que durou um ano e meio. Além disso, Clara já se aventurou na moda, na música e participou de coletâneas independentes de poesia.