14 de março de 2024 | Luís Matheus Brito
De um expediente astrológico, a dupla Davi Cavalcante e Maria Stefane extraiu a concepção do projeto Opostos Complementares. Aquele, pois, é de Virgem e esta, de Câncer. A partir dessa diferença trivial, eles concebem uma investigação, cuja guia é a linguagem astrológica, apontando, na maior parte do tempo, materiais aos quais podem recorrer para montar o conjunto de peças. Daí o fato de, em Opostos Complementares, Davi ligar-se à Terra e Maria, à Água.
O que poderia ficar determinado e restrito à banalidade do conhecimento astrológico, funciona, na verdade, como ponto de partida para pensar não só nos correlativos que constituem a dupla de artistas, mas também nas imagens que — dessa operação em diante — erguem-se, e as imagens têm certa unidade, na medida em que, sobretudo com o suporte de tecidos, envolvem-se numa paleta de tons de bege e de marrom.
Nesse cenário cromático, os tubos de ensaio oferecem uma leitura à exposição Opostos Complementares — e essa leitura está mais ou menos dada nas outras peças: o que é determinante é a investigação com semblante científico, de modo que a soma dos trabalhos mira num arranjo laboratorial. Isto é, um saber não convencional, como a Astrologia, foi mobilizado para conquistar uma aparência científica, por isso que há uma ironia escamoteada no conjunto.
Em Opostos Complementares, o que está em jogo não é a validação da Astrologia como saber científico, nem sequer a experiência da dupla como uma dinâmica tão-somente laboratorial. Em vez disso, é a aparência. É a superfície o que, mais que qualquer coisa, um trabalho artístico pode oferecer — a superfície das imagens, que, nesse caso, dependem de madeira, água e planta, por um lado; de escultura, fotografia e instalação, por outro.
A primeira apresentação das obras ocorreu em novembro de 2022, na Doca, em Aracaju. Àquela época, a exposição fez parte da programação do Ocupa, evento organizado no último domingo de cada mês pelo coletivo Incorpórea, do qual Davi faz parte. Sobre as possibilidades de criação coletiva, os artistas responderam a algumas perguntas da Tilápia-azul.
Leia a entrevista:
1 O trabalho em dupla não é tão comum em Sergipe. Para fazer uma exposição coletiva, por exemplo, os artistas e os curadores recorrem a um tema e a uma expografia que possam juntar e separar trabalhos com facilidade. No caso de vocês, é a construção de uma linguagem coletiva o que está em jogo. Melhor dizendo, a linguagem de e em par. Quais conflitos são comuns durante a construção de um trabalho como Opostos Complementares?
DV: Eu aprendi o valor do trabalho coletivo dentro das artes contemporâneas participando da minha primeira residência artística em 2019, desde então eu realizei trabalhos em duplas com artistas como Joana Hevelyn, Kely Nascimento, Rayanne Ellem, Maria Stefane — em Opostos Complementares — e Bia Rezende durante a residência Lab Poesia (Tomar Corpo). É curioso perceber que as construções em duplas possuem conflitos que nem sempre são gritantes e fazem parte do processo de provocar para alimentar a criação. Eu normalmente crio com quem eu sinto afeto, já tenho alguma relação de troca, pois sei que dentro dessa atmosfera quando os ruídos surgem é necessário termos uma escuta disposta. Eu tenho noção que sou chato com o que eu faço, pois faz parte do que eu acredito, são coisas que me alimentam e fazem sentir a sensação de realização dentro do cotidiano, além de uma lógica capitalista do trabalho. Diante disso, às vezes, eu sinto que corro o risco de ser impositivo em alguns momentos e talvez o maior conflito ao criar em dupla seja eu comigo mesmo, para que o outro tenha espaço para fluir junto, sugerir, opinar, intervir e criar junto. Assim como a poética do trabalho traz, terra e água, eu sinto que o diferente é bom para complementar algumas características da minha personalidade, talvez por isso eu goste de estar criando em dupla eventualmente.
MS: O processo de construir coletivamente me acompanha desde o início, em outra vertente, no teatro, foi nele que aprendi como ouvir, falar, transformar isso e levar meus sentimentos e do outro ao palco. Em Opostos Complementares, foi a primeira construção em conjunto fora desse segmento e acredito que os principais conflitos foram em relação à produção de algumas obras, devido ao desgaste e ao cansaço.
2 Não é a primeira vez que Davi faz esse tipo de colaboração. Em 2023, a Galeria de Arte Sesc Cícero Alves dos Santos - Véio, em Aracaju, recebeu uma versão de Monólogos Interiores, trabalho que ele construiu com Rayanne Ellem. Como as obras dessa exposição foram criadas primeiro, qual nível e tipo de influência um trabalho teve sobre o outro?
DV: Não consigo enxergar uma influência direta de um trabalho sobre o outro, exceto pela criação em dupla. Os momentos, estruturas, condições, locais, materiais e questões que cercam cada produção são distintos. Acredito que tem algo que é perceptível nas duas séries, Monólogos Interiores e Opostos Complementares, que é o minimalismo visual e a síntese de um longo discurso que pode ser tensionado ao nos depararmos com uma obra, mas essas são características que eu trago no meu trabalho individual e de alguma forma consigo imprimir em trabalhos feitos em colaboração com outras artistas. Enquanto Monólogos Interiores foi criada dentro de uma casa em meio à pandemia enquanto revirava os livros e fazia colagens, Opostos Complementares foi criada no encontro da água com a terra, andando, coletando, classificando e produzindo de maneira mais experimental e sensitiva do que analítica a princípio.
MS: Acredito que essa pergunta não seja direcionada a mim, já que não tive acesso à construção de Monólogos Interiores.
3 Em Opostos complementares, há um número tímido de obras, digamos, mas uma variedade de técnicas e suportes. As obras não perdem a ideia de unidade nem sequer uma vez. Como elas se modificaram da concepção para as etapas seguintes, a produção e a montagem da exposição?
DV: Eu gosto de pensar nessa diversidade da série, mesmo com poucas obras expostas, oferece ao público: uma fotoperformance; uma instalação feita com terra, água, tubos transparentes, madeira e tecido; uma escultura viva composta por terra, madeira, água e planta; e autorretratos da dupla criadora em suas formas, terra e água. Ainda há outros trabalhos não expostos e/ou materializados dessa série, mas que também apresentam outras linguagens, suportes e técnicas. Espero um dia colocá-los ao público. Apesar de toda essa variedade mencionada, existe algo que o público talvez nem se dê conta, mas que são escolhas conscientes que fazemos enquanto arte e posteriormente enquanto curadoria. Como artistas, o uso de materiais naturais na maioria das vezes é um artifício que ajuda a dar unidade às obras. Pigmentação natural com terra, texturas, lona de algodão para impressão das fotos, terra e água. Essa simplicidade visual funcionou muito bem para criarmos coisas que nem imaginávamos a princípio e no processo descobrimos a potência de cada experimento e matéria. Enquanto curadoria, gosto de me lembrar da ordem de visualização das obras e seus títulos quando fizemos a exposição na Doca: O que somos?; Possibilidades afetivas; Terra; Água; O que formamos? Isso soa como uma poesia ou fragmentos dela para mim, as demais linhas o público preenche.
MS: Gosto muito da possibilidade de usar várias técnicas nas obras que produzo, existe uma preocupação e cuidado para que a ideia não se perca. Já a produção e montagem da exposição foram pensadas coletivamente, em passar a proposta de sentido para os visitantes.
4 Em 2022, a Doca foi o principal espaço de experimentação artística em Aracaju, graças, aliás, a iniciativas que vocês desenvolveram por meio do coletivo Incorpórea, como a série de eventos Ocupa, que reunia artistas para debates, exposições, leituras e performances uma vez por mês. Vocês consideram Opostos Complementares como um resultado do amadurecimento pelo qual passaram nesse período?
DV: Acredito que a possibilidade de ter vazão para nossos trabalhos nos motiva a criar. Não que nossa criação se restrinja a lógica de demanda, mas que realizar o Ocupa e ter a Doca como espaço foi importante para entendermos que podíamos experimentar e colocar ao público o que vínhamos produzindo, sem esperar editais e instituições. Quando levamos Opostos Complementares para esse contexto, entendemos a relevância que havia na construção de um espaço em que estávamos nos aproximando de outras linguagens artísticas e do público, sem exigir que estes se deslocassem para galerias convencionais. Sinto que o Ocupa teve um papel fundamental para que a série virasse exposição.
MS: Sim, analiso que o Ocupa teve uma partição muito importante para que Opostos Complementares se tornasse exposição.
5 A fotografia está presente em algumas obras de Opostos Complementares, inclusive o retrato: em duas obras, vemos os rostos da dupla — numa, Davi representando a terra; noutra, Maria representando a água. Uma vez que o corpo tem certa centralidade no trabalho de vocês, que se desdobra em artes visuais, performance e teatro, quais dinâmicas há entre ele e as linguagens artísticas com as quais vocês têm contato?
DV: Eu acredito que as linguagens artísticas servem como suportes, aparatos para melhor expressar o que sinto, pesquiso e desejo provocar. Gosto também de pensar e reforçar que tudo perpassa o corpo, e antes de tudo, eu sou um corpo. Então, eu não consigo separar a minha criação dessa matéria que me suporta e permite com que eu entre em contato com o mundo. As linguagens chegaram para mim de forma orgânica, quase como uma palavra nova no dicionário, palavra sentida e formulada para poder expressar melhor a sensação. No começo da minha jornada artística pública, as artes visuais eram tudo que as pessoas viam do que eu fazia, muitas vezes restringindo à fotografia. Hoje em dia elas conseguem ver a performance, o audiovisual, a colagem, a escrita, tantas outras formas que foram surgindo porque o corpo precisava dizer algo e encontrou forma nesses suportes. É um pouco sobre dizer a partir “da” e por meio “desta” provocar o sentir. Eu posso descrever um rosto ou apresentar uma foto, ambos são válidos, mas cada um vai provocar uma sensação diferente em quem absorve a imagem, falada ou ilustrada.
MS: As artes visuais, a performance, o teatro e a escrita me atravessam enquanto indivíduo, e acredito que seja difícil não levar as obras, já que ali também é um pouco de mim.
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Davi Cavalcante é um artista multidisciplinar, pesquisador e curador. Graduado em Comunicação pela UNIT e pós-graduando em Teatro do Oprimido na UFBA. Possui uma produção artística acerca da comunicação, do corpo e temas relacionados. Utiliza fotografia, performance, audiovisual, colagem, instalação, entre outras linguagens, suportes e técnicas, acreditando que o suporte é auxiliar ao conteúdo da obra. Com uma circulação global, seu trabalho já foi premiado em 1º lugar no 27º Salão dos Novos (Aracaju, BR) e também participou da Creative Residency Cine Luso 2019 (Bruxelas, BE). Atualmente integra alguns acervos públicos, incluindo Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Fundação de Cultura e Arte Aperipê de Sergipe e Fundação Cultural Cidade de Aracaju. Nasceu, vive e trabalha em Aracaju, SE.
Maria Stefane Atriz, Artista visual, Roteirista e Produtora cultural. Maria Stefane encontra nas palavras, sejam elas escritas, faladas ou simbólicas, uma forma de provocar o mundo através da sua sensibilidade. Com uma formação artística vinda das artes cênicas através do grupo Imbuaça (2019), Escola De Artes Valdice Teles (2020) e do Curso Primeira Cena (2021), aliada a sua paixão pela literatura, Maria explora as possibilidades entre o dito e o não-dito. Seus trabalhos já foram apresentados no Festival do Minuto (2020) e Bienal da Fotografia do Sertão (2021). Atualmente está em pré-produção do roteiro documental Donas da Cultura Popular - Dona Madá, aprovado na LPG 2023. Realizou uma exposição na Galeria de Artes Cícero Alves dos Santos Sesc Sergipe (2024). Já realizou a produção e preparação de corpo da performance Não Seque Por Dentro (2022/2023) e segue produzindo entre as cênicas, o audiovisual e as artes visuais.
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Luís Matheus Brito (1994) é poeta, ensaísta e mestra em Estudos Literários pela UFS (Universidade Federal de Sergipe). Publicou Guia de Queixumes (edições blague, 2021). Edita a Tilápia-azul.