30 de julho de 2025 | Luís Matheus Brito
Dois termos podem oferecer uma definição mais ou menos precisa para o trabalho Do que são feitos os muros, de Davi Cavalcante: performance-instalação. No primeiro caso, a designação se vincula aos instantes de construção do muro, logo uma atividade com duração pré-determinada na galeria ou no museu — um ato performático que, aberto ao público, impõe uma maleabilidade não só para a obra que está a caminho, mas também para o artista que executa a tarefa braçal. Para ele, convém designações igualmente duplas: artista-construtor, artista-engenheiro ou, em outros termos, artista-pedreiro — pares que, direta ou indiretamente, produzem planos de tensão permanentes, na medida em que o autor e a obra convocam considerações sobre o racismo e outras violências. No segundo caso, a designação se vincula ao resultado da própria performance, um muro, que, por sua vez, não conserva elementos distintos dos muros de uma casa de alvenaria, exceto pelo conjunto de palavras que Cavalcante insere em alguns blocos. Por exemplo, “censurar”, “julgar” e “silenciar”. Restrito a verbos no infinitivo, o vocabulário introduz em Do que são feitos os muros um traço político, desde que, na leitura, não haja o isolamento do mecanismo que é responsável pelo ato de talhar palavras em blocos. Isto é, o trabalho construtivo do artista, assim como a disposição do seu corpo na formulação de uma cena. Aí reside o ponto de partida para as ambiguidades.
Nas apresentações, Davi Cavalcante utiliza equipamentos de proteção individual, como abafadores de ruído, óculos e luvas, com os quais fixa a imagem do construtor. O muro é feito, antes de qualquer coisa, por meio da força de trabalho do artista, que, com ele, cria pontos de contato entre o valor metafórico, que já se estabeleceu no título, e o valor operacional, que se ergue com o fim da performance. Mas há, na construção de Cavalcante, mais tensão entre outros termos antagônicos, como o par braçal e cerebral, sobretudo pelo fato da atividade artística, no senso comum, vincular-se tanto à vida intelectual quanto à elite intelectual, às questões da mente, às questões da alma, desvinculando-se de uma materialidade, de um corpo, é claro — o trabalhador-artista é, assim, uma exceção nos circuitos de arte —, mas o autor do muro não propõe, talvez, desfazer os binômios; prefere, ao contrário, relacionar-se com eles, agitá-los, perturbá-los, em prol do pensamento que desponta a partir das mãos. Em Do que são feitos os muros, as mãos se somam às chaves de fenda, subvertendo a função primária dessas ferramentas. Em vez do ajuste de parafusos, a ocupação com a escrita. São, as chaves de fenda, os objetos com os quais se escreve a sequência de palavras, melhor dizendo, com os quais se abre a sequência de fendas definitivas nos blocos.
O site de Davi Cavalcante¹ possui um vídeo no qual se vê uma versão embrionária do muro. Sem a argamassa, os blocos se dispõem uns sobre os outros, revelando o movimento de expansão pelo qual o trabalho passa desde 2020. No vídeo, o artista aparece sem a maioria dos instrumentos de trabalho — sem abafadores de ruído, óculos ou luvas —, conta apenas com chaves de fenda entre as mãos. As cenas, que são acompanhadas por uma narração em off, têm valor doméstico acima de tudo. Uma hora, Cavalcante diz: “materializamos a nossa separação”, reiterando a representação de um conflito como o lugar adequado para o muro — àquela altura, um esboço da peça que circulou com a exposição coletiva Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira, cuja curadoria é de Deri Andrade. Entre 2023 e 2025, Do que são feitos os muros chegou às unidades do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, assim como ao Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileiro (MUNCAB), em Salvador. A primeira versão pública da performance-instalação, porém, ocorreu na Praça Eufrásio Correia, em Curitiba, como parte do 67º Salão de Artes Contemporânea do Paraná, do Museu de Arte Contemporânea (MAC), no ano de 2021.
Uma terceira designação é possível para o trabalho Do que são feitos os muros, na medida em que ele se assemelha a uma “escultura no campo ampliado” — para fazer referência ao texto de Rosalind Krauss², que, por sua vez, lembra como a escultura e a pintura foram “moldadas”, “esticadas” e “torcidas” na primeira metade do século XX, demonstrando, assim, uma “extraordinária elasticidade”; ao mesmo tempo, lembra que a escultura não é uma categoria universal, mas, ao contrário, cultural e histórica. Em outros termos, a escultura passa por processos de rearranjo, de reconstrução das convenções, ao longo do espaço e do tempo. No caso de Davi Cavalcante, a escultura se aproxima de uma expressão negativa pelo fato de rejeitar um caráter monumental desde o primeiro gesto, mas não só. A performance-instalação-escultura rejeita o abrigo e o lugar fixo, assim como a “representação comemorativa”, associados a paradigmas esculturais. Para a construção do muro, no entanto, o regime que se cristaliza é o regime da transitoriedade, dentro do qual forças antagônicas, como impulsos braçais e impulsos cerebrais, permanecem em tensão. A obra desliza de espaço cultural em espaço cultural, sem se fixar como paisagem ou arquitetura, sem se fixar como ruína ou casa. O que a define como escultura é, na verdade, a “combinação de exclusões”, por meio das quais o artista passa a abrir fendas em blocos, bem como em práticas.
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[¹] Davi Cavalcante, Do que são feitos os muros: uma reflexão sobre a materialização da nossa separação. Disponível em: <https://davicavalcante.com/portfolio/do-que-sao-feitos-os-muros-2020-atualmente/>. Acesso em 30 jul. 2025.
[²] Rosalind Krauss, A escultura no campo ampliado. Tradução de Elizabeth Carbone Baez. Revista Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 17, n. 17, p. 128-137, 2008. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/52118/28402>. Acesso em: 30 jul. 2025.
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Luís Matheus Brito é escritora e pesquisadora. Faz doutorado em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit), da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), onde desenvolve uma pesquisa a respeito dos diários do escritor argentino Ricardo Piglia. Publicou o livro de ensaios As propriedades do acaso (Tilápia-azul, 2025) e o livro de poemas Guia de Queixumes (blague, 2021). Edita a Tilápia-azul.
Davi Cavalcante (1994) é um artista multidisciplinar, pesquisador, produtor cultural e curador. Mestrando em Corporeidades e Interfaces: Somática, Performatividade e Artes Digitais pelo PPGAC na Universidade Federal da Bahia (2025 - Atualmente), é pós-graduado em Estudos em Teatro do Oprimido: Práticas Político-pedagógicas (2025) pela mesma instituição e graduado em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Universidade Tiradentes (2017). Possui uma produção artística acerca da comunicação, do corpo e temas relacionados. Utiliza fotografia, performance, audiovisual, colagem, instalação, entre outras linguagens, suportes e técnicas, acreditando que o suporte é auxiliar ao conteúdo da obra. Seu trabalho já foi premiado em 1º lugar no 27º Salão dos Novos (Aracaju, BR) e também participou da Creative Residency Cine Luso 2019 (Bruxelas, BE). Atualmente integra alguns acervos públicos, incluindo Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Fundação de Cultura e Arte Aperipê de Sergipe, Fundação Cultural Cidade de Aracaju e SESC Brasil. Nasceu em Aracaju (SE), mas possui a compreensão de que os territórios são apenas fronteiras, não limitando a sua circulação.