23 de agosto de 2023 | Neto Astério
hoje, 17 de junho de 2020, completo os meus vinte e dois anos. vinte e dois anos. dois patinhos na lagoa. não há lagoa onde eu moro. eu digo onde eu moro, mas seria mais justo dizer que é o lugar em que eu nasci. o lugar que vivi até os dezoito e onde agora tô passando a quarentena.
este é o fundo de casa:
não casa de minha casa.
não casa lugar que eu moro.
aqui não é onde eu moro.
aqui eu tô de passagem, tá ligado?
aqui é onde eu tô passando a quarentena.
aqui eu tô passando a quarentena e só. é o
que eu repito pra mim. repito sabendo que há
muitas chances desse lugar passar a ser o
lugar que eu vou voltar a morar.
o lugar que eu vou retornar. olhar para trás. procurar decifrar.
bom, o que sei é que aqui eu não aguentava mais lidar com tanto isolamento. dos quinze aos dezoito eu apenas pude recorrer à mim. se isso é um desabafo é porquê por tanto tempo eu não soube como reagir. reagir ao medo de ser humilhado por ser viadinho. na primeira oportunidade que eu tive: eu fugi. há quatro anos... fugi! me piquei. não quis nem saber. corri pra longe daqui. entrei na universidade pra fazer cinema mesmo em conflito por saber que de onde eu vim, cinema não é trabalho que se faça.
no fundo do quintal do lugar que aqui eu chamo
de casa, fico de olhos nos caminhos que nos
atravessam. os caminhos que nos permitem a
fuga. nós. as pessoas que moram aqui: eu,
minha mãe, minha irmã. não consigo mais
pensar só em mim.
fico de olho nas ruas que me permitem
livremente sair. simplesmente sair. fico de olho
nas ruas que me permitem voltar aqui.
enfeitiçado de coragem, fico de olho nas ruas que me fazem querer voltar pra aqui.
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[¹] Esta é uma adaptação de curta-metragem homônimo de Neto Astério. Produzido em 2020, “retorno” é um monólogo no qual Astério reflete sobre os primeiros meses de isolamento social na cidade materna, Conceição do Coité, na Bahia.
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Neto Astério nasceu em Conceição do Coité, na Bahia, e reside em São Cristóvão, Sergipe. Graduado em Cinema pela UFS, é membro da produtora audiovisual Floriô de Cinema e Assessor Administrativo na Diretoria de Arte de Cultura de São Cristóvão. Dirigiu ANARRIÊ (2023), onde a fé tem nos levado (2020), retorno (2020) e Translúcida (2015).