23 de abril de 2025 | João Gravador
Entre Bahia e Sergipe, Nordeste, transmitindo ao vivo, diretamente de um presente que não para de se refazer, são exatamente 18h34, e você está sintonizado na estação que traduz o ruído do agora. Assim, Kauam Pereira nos apresenta homem, menino, estrela, anjo, como uma estação de rádio, nos ajustando às diversas frequências que integram a contemporaneidade. O que ressoa são estalos e falhas, pulsos e vibrações, que não abafam a dissonância, apenas tocam suas reverberações em remix.
Ao nos convidar para esse fluxo de ruídos e ritmos, esta exposição discute gênero, sexualidade, masculinidade e regionalismo a partir das vivências pessoais do artista — como um dial que transita pelo local como seu global, sem binarismos nem hierarquias entre expressões culturais, sampleando tanto a cultura queer erótica quanto a produção artística mainstream.
Pop e queer se encontram não apenas como uma sobreposição estética ou fusão de linguagens, mas em convergência contra os parâmetros políticos e sociais da arte: moldados pela lógica do discurso masculinista e da violência velada — um projeto político-ideológico que sustenta e organiza valores dentro de um território heteronormativo e patriarcal.
Kauam desafia esse campo vigiado por "homens sérios" ao se tornar um corpo-antena, captando e transmitindo ondas que escapam desse espectro, como um dispositivo sensível à escuta de um paradigma mais amplo, que transcende divisões e põe em xeque a própria ideia de uma uniformidade ou de uma única frequência dominante. Kauam não apenas desvia das expectativas do sistema artístico, mas, de forma mais radical, o deixa sem respostas.
Essa tensão se intensifica entre o ornamental e o decorativo, considerados subversões da dominação masculinista pelo mito da virilidade. Mais que uma rejeição a padrões modernistas e funcionais, o artista busca transformar o que antes era visto como adorno em estética do excesso — desafiando as normas de gosto ao reivindicar o marginalizado como central na experiência artística. Onde o artifício e o exagero reconfiguram as relações de poder na arte, instaurando um novo olhar sobre identidade, corpo e desejo.
O artista se move sem buscar uma imagem fixa, acolhendo fissuras e imperfeições como parte fundamental da experiência: cenas carregadas de intimidade e sensualidade que não estão no onírico ou no factual, no sagrado ou no profano, na violência ou na suavidade, mas entre esses estados. Objetos, pinturas e desenhos de contornos hesitante, que insistem na dúvida como forma de presença; e peças cerâmicas, que criam um jogo entre o que permanece bruto e o que se refina no fogo, constituem um campo estético onde o sentido vacila e se reinscreve, não se dissolve, mas retorna, insiste, desloca-se, para dizer de outro modo, deixando, no lugar da certeza, apenas a ânsia de reconfiguração.
Essa busca incessante contra um lugar fixo, também ressoa no modo como Kauam lida com questões de gênero. O corpo, com seus muitos ecos e dissidências, é um território de intimidade, afeto e desejo, que permite transformações — mas esse desejo não é modulado pela estética do aceitável, ele assume a estranheza, o gozo, os pelos, a barriga, os suores nas dobras da carne. Não há suavização da experiência do corpo: há presença.
Kauam reivindica um erotismo que não se submete ao receio do toque, mas emerge no rastro do corpo sobre a superfície de trabalho. Suas imagens buscam a pulsão do que é falho e, por isso mesmo, vivo. A tática está no modo como ele se move e se deixa afetar, ultrapassando binômios que separam força de delicadeza, desejo de cuidado, esboço de obra. Se há erotismo, ele é cru e direto. Se há afeto, ele não pede licença para dar-se. Se há uma obra, ela acontece no fluxo da ação criativa; contínua, como a busca pelo próprio lugar.
Em sua crítica ao mercado e às exigências de um trabalho que se encaixe nas demandas do sistema da arte, Kauam se distancia do panfletário sem deixar de ser político. Cantarolando de leve, como quem não se importa muito com os 'certos' do mercado, “o certo é saber que o certo é certo”, como reza a canção — que contraria tanto o que se apropria da arte como mercadoria quanto o valor do que é consumido e reverenciado.
Ao contrário de Gauguin — que, nos versos de Caetano, partiu em busca de um paraíso projetado sobre o outro e não escapou à contradição de sua própria condição, reforçou estereótipos e cristalizou imagens que aprisionaram a alteridade —, Kauam não amou a luz da Baía de Guanabara, mas a da Baía de Todos os Santos. Essa luz não é metáfora de um idílio tropical, mas a insistência no que é complexo, no que não cabe em molduras fáceis. Se Gauguin romantizou a fuga como caminho para a reinvenção, Kauam encara o lugar que habita e faz dele instrumento de trabalho.
Seu estrangeiro não é aquele que atravessa fronteiras em busca de um território para reinventar-se, mas o que descobre que já nasceu fora do mapa: nordestino e viado, em um sistema de arte que ainda concentra olhares e discursos; que habita essa condição de desarmonia sem nunca ter saído do lugar porque o mercado da arte impõe esse estatuto a quem cria longe dos grandes eixos econômicos, centralizadores da produção e do comércio de obras.
Mas, em vez de buscar validação nessa geografia, ele tensiona o convencionalismo que tentou confinar o Nordeste dentro de estereótipos depreciativos. Ele não quer ser lido como um artista “de” um lugar, mas como alguém que esgarça os limites do que esse lugar pode ser, fazendo daquilo que é visto, margem de insubordinação. Sem ter de se distanciar daqueles com quem conversa. Onde querem Nordeste, é fronteira; onde querem sotaque, são milhares; onde querem silêncio, um coro inteiro; onde querem resistência, é permanência; onde querem êxodo, é raiz. Ele mistura o barroco e o quadrinho, o erótico e o bucólico, o delicado e o grotesco, construindo um universo onde tudo pode coexistir sem justificativas. Suas imagens têm luto, melancolia, viscosidade, crítica e uma certa sujeira que não recusa a beleza pura, mas convive com ela.
No barulho das suas composições — na fusão de traços, temáticas e materiais — ele ama, sonha, chora e samba sem jamais se render à nostalgia desonesta ou ao escapismo. Sua estação é Ogum e Padre Cícero; bareback e colcha de retalhos; orquídea e carrapicho; faca no punho e prece ao vento; Hermé e Pido, Mama e Kita, Véio e Warhol; o minadouro no olho do mangue e o fruto do cajueiro.
É assim que a música toca: na desistência de qualquer tentativa de aceitação. Quanto menos Kauam entende a batida, mais a ama — como se a recusa fosse, nesse caso, a maneira mais pura e intensa de se entregar a ela, uma forma mais verdadeira de amar seu ofício e fazer dele o próprio sumo da arte. No artista, a resistência não é unicamente negação, mas também criação.
E, como numa transmissão de rádio, o sinal oscila quando se critica o poder, a hipocrisia e a cegueira cognitiva. Às vezes, outra frequência se sobrepõe ao resto, numa melodia pavorosa que atordoa. Mas logo vem esse zumbido constante que não permite que uma única voz domine o fluxo: sua rádio toca para quem quiser ouvir.
E agora, interrompemos a transmissão — como se um sintetizador interferisse no sinal. Tudo é sonho ou vigília. Só restam fragmentos de azul, como já dizia Djavan, impossíveis de nomear: nem todo fim de tarde será homem, nem toda lua será menino, mas as estrelas ainda vão nos mostrar que Kauam segue mais artista no lugar e no tempo — que não termina, se dissolve na estática.
Siga captando o que vibra no ar.
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João Gravador vive e trabalha em Salvador (BA). É artista visual, escritor, doutorando em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sua prática artística inclui gravuras, objetos, esculturas, instalações, site-specifics e textos que investigam a interseção entre a imagem e a palavra e seus processos de tradução — e o que não cessa de (não) traduzir: a impossibilidade da linguagem, a farsa, o fracasso, o desaparecimento, o discurso amoroso e suas implicações sexuais e políticas sob uma ótica homoafetiva. Participa regularmente de exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior, além de ter recebido prêmios, menções e bolsas de residências por sua produção artística. Quando um peixe abandona o verão (Editora Minimalismos, 2024) é seu primeiro livro de poesias.
Kauam Pereira é natural de Alagoinhas (BA) e reside em Aracaju (SE). Artista visual, frequentou a Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia e participou de cursos livres de gravura no Museu de Arte Moderna da Bahia, assim como de espaços independentes de formação em arte. Em sua prática, reorganiza elementos do cotidiano por meio de desenho, pintura e escultura, utilizando movimentos como apropriação e observação. Seu trabalho busca gerar reflexão sobre questões de gênero, sexualidade, masculinidade, reprodutibilidade, regionalismo e memória, misturando vivência pessoal, ficção e reflexões sobre o tempo presente. Participa regularmente de exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior.